depois do fim há memória

uma receita do dia mais triste do mundo:

uma esplanada azul todos os carros em contramão

meu corpo molhado.

todos os dias tristes são para

decorar letras de músicas

vir ao mundo sóbrio e

ter de adivinhar o caminho

de volta é duro

força nos braços velocidade certa

aqui fica o ingrediente secreto

 

 

Voltamos à única estação ao corpo

inundado no primeiro abraço à linha da

cidade onde acaba o poema

nasci hoje para te ver acordar 

falei várias línguas com amigos amei o

impossível  estudei o céu de várias

cidades frias

cortei o cabelo dez vezes e mais vezes

voltei a ti

como movimento natural prisão doce

beijo namorado

nasci hoje para te ver feliz

Voltamos à última estação ao corpo

inundado no primeiro abraço

Um dia apareces
com uma desculpa
bates no meu quarto
falas do teu estado
o teu deus me manda embora
tu vens bater
no meu quarto
com um folheto de um museu
lá do fundo da cidade
deus me livre a macronia
deus me livre os fascistas
que entraram na faculdade
deus me livre as fábricas
do Denis laget
a tua vida acompanha
o sistema
elimina a dúvida
procura uma linguagem
comum
deus
te livre da pausa
da eternidade
tu vens bater no meu quarto
e falar da vida dos partidos
e da superioridade das coisas 

 

 

Eu não posso esquecer

o mundo a música invariável do teu carro

o planetário das nossas respirações

tuas mãos tímidas

no vidro embaciado

ou os olhos que tocam os meus olhos

que tocam os nervos do teu cabelo

que tocam os teus lábios quentes

Não quero esquecer

as tuas mãos cubos de gelo

nas minhas costas –

sítios escuros

onde desenhavas os projetos

de um amor só;

Como descobrimos

que os condutores dos elétricos de Lisboa

são incomodados

pelos turistas frenéticos

por empurrões

por traduções falsas

como vimos

uma luta num jardim

o sol enquadrando

uma fotografia tua

e os teus pensamentos

soltos:

– eu gosto do teu estilo -,

mas eu não quis acreditar,

como é que se acredita

no amor.

Eu não posso esquecer

que nem todas as palavras

eram ditas que todos os segundos

eram meus eram nossos

Não posso esquecer a vida

Os teus beijos são os elétricos de Lisboa

O teu amor ainda é saliva no meu corpo

Os teus dedos ainda estão encaixados

nas minhas mãos

volta para casa amor

que há uma porta aberta ideias na mesa

e alguns minutos do meu tempo

volta ao dia-a-dia gasto

à discussão eterna

e ao trabalho nosso

que é preciso mudar de vida

que é preciso fritar o arroz

e não pagar propinas e mudar isto tudo

mas eles não gostam de complicações

nem de jogos ou invenções reais

nem do meu quarto justo

no fundo tu já sabias:

a dor provoca a ação
a dor provoca a ação
a dor provoca a ação

 

 

Trincar uma laranja

é como voltar a casa

numa pressa e beijar-te.

É morrer

de uma vez só

e partir a meio o sono

ou descobrir um caminho

novo até ti.

mil duzentos e setenta beijos

para acabar sozinha

a mudar o sofá de sítio 

e pensar em ti

para lavar os dentes

e pensar em ti.

para ouvir um escândalo

na televisão

e pensar em ti

o escândalo sou eu

e o sofá já não é meu

trincar uma laranja

é quase trincar um beijo teu

 

 

 

 

 

 

 

 

O amor já esteve para acabar

O amor já esteve para acabar,

ficou tudo num silêncio

germinal

e os andantes das ruas

não se viam mais.

É verdade,

que Bob Dylan também viveu

o dia

vivemos todos,

mesmo os que ainda não nasceram.

Era silêncio fúnebre,

os olhos das pessoas

eram olhos de mortos,

mas de mortos que andaram tristes em vida,

e as pessoas não reconheciam as outras.

Tudo se passou assim

(de que outra maneira poderia ser?)

é que também eu rasurei um papel

nesse tempo.

Escrevi: “o amor está para acabar hoje”

E quando agora leio,

é presente

e talvez esteja mesmo para acabar

tudo outra vez.

 

 

 

 

 

Tortura débil e dormente

Olha que a velocidade é forma e jeito

Mas é dor insuportável

Os dedos que te tocam são

Molhados encaixados nos teus nãos

Súbitos bafos decerto frescos

De noites trincadas à pressa

Vêm a ti só a ti só a nós

Os gestos congelam os próximos gestos

Estávamos para contar outros suspiros

Mas já não consegues mover

Mais versos mais distâncias entre nós

Que forces a palavra, meu amor

Que deites o teu sono no meu colo

Olha que é frágil o tempo

E os teus sinais receosos

São horas sem luzes

Em trânsitos deitados

Pela saliva

Que forces a palavra

E que te deites levado

Pelo rumor de toques suaves

Olha olha a tua voz é tão doce

E a janela é curvada não geométrica

E os teu olhos são

O café queimou a pele

Há que contar com a dor fugaz

Do café ou de teres saltado pela varanda

Há vinte juízes a olharem os nossos beijos mortos

Que fizemos

Com as palavras

Condenam-nos as velocidades

E os silêncios

Das varandas não salta mais nada

Nem pássaro nem nós

O nó de nós

Olha olha

queimou-se pele e papel e alguns gatos morreram

ao saltar

e o teu corpo ficou em saliva fundente

olha

vieram para julgar as palavras

e tiraram-nos os silêncios.

Se eu pudesse, subitamente,

morar nos teus olhos

e mostrar-te o desejo

de trincar um beijo nos teus lábios

e na tua pele escrever versos mastigados.

Se eu morasse nas janelas mais altas dos grandes prédios

ou em barcos perigosos

ou em casas sem tetos com vistas melhores,

eu mostrava-te o que é morar em olhares.

Mas eu não posso respirar

e dizer-te que as nossas figuras

e os nossos ossos estão pegados.

E decerto queres saber se penso

na eternidade ou num qualquer deus ou no nosso governo

mas eu não moro nesses olhos, e, como poderia?

Diz-me, duvidando,

como se fosse possível duvidares de quem não conheces,

a possibilidade de habitarmos os dois

uns olhos de ferro

imersos em oceanos de liberdade.